Relatos de um jovem médico em meio a uma dor silenciada - artigo semanal da Diocese de Jales
Imagine que você sente uma “dor de barriga”. Ela é incômoda, já
dura dias, e os remédios que tinha em casa não estão funcionando. Então,
você decide buscar ajuda. Mas a triagem está a 6 horas de viagem de barco
e você está doente.
Cada voluntário experimenta alguma dor e, isso é, de certa forma,
bom. Falar sobre expectativa de vida baixa, crimes ambientais ou o vício,
especialmente pelo álcool, parece distante. Mas a dor é diferente. Ela é real.
Ela existe em cada segundo.
Voluntário da 5ª missão UNIVIDA Amazônia
Médico residente em Oncologia Clínica – HCRP - CRM 219198
Voluntário da 5ª missão UNIVIDA Amazônia
Durante os atendimentos, ainda com a população receosa, contando com a ajuda de alguns membros da tribo para tradução, percebemos que as queixas não eram apenas dores de barriga, costas ou coriza. Esses relatos foram vivenciados durante a 5ª Missão UNIVIDA Amazônia, que aconteceu de 09 a 17 de janeiro de 2025.
Uma das pacientes era uma mulher de 31 anos, mãe de três filhos.
Chegou ao atendimento relatando uma leve dor de cabeça, mas sua história
era devastadora: apanhava do pai desde jovem, viu a mãe fugir de casa para escapar do abuso e teve o primeiro filho aos 13 anos, estava casada com um adolescente de 15. Foram morar com uma tia. Hoje, o marido alcoólatra a agride fisicamente, enquanto a tia a difama perante o pajé da aldeia. Seus
únicos pontos de apoio são os filhos, mas não tem sido suficiente. Há uma
semana, ela tentou matar a tia e, um dia antes do atendimento, tentou tirar a
própria vida.
Outra paciente era uma mulher de 59 anos. Havia feito a retirada dos
seios há três anos e, supostamente, estava curada do câncer de mama.
Agora, apresentava dificuldade para engolir, uma massa na região da
tireoide e um nódulo na axila. O filho não conhecia o histórico da mãe, que
não falava português. Os registros dela estavam na UBS mais próxima,
inaugurada recentemente, mas sem atendimento funcional.
Também atendemos uma mulher de 35 anos que sofria de desmaios
súbitos, descritos como “liga e desliga”. Outra, de 30 anos, não menstruava
havia três anos. Outros casos apresentavam lesões sugestivas de
hanseníase.
Todas estas pessoas estavam a 6 horas de qualquer atendimento e no
máximo, lá chegando, passariam por uma triagem, efetuada por uma
enfermeira na cidade mais próxima.
A aldeia em que estávamos contava com uma escola e uma unidade
odontológica equipada. Ambos são frutos de projetos anteriores, mas, hoje,
faltavam medicamentos para tratar até mesmo a dor de barriga mais
simples. Essa realidade nos obriga a refletir sobre nossa fragilidade.
Escolher vir até aqui não é apenas uma decisão profissional; é
permitir-se ser tocado, fragilizar-se diante do sofrimento alheio. Ser
cuidado em meio à dor é encontrar o último vínculo lúcido com o mundo.
Cuidar e ser cuidado nos ensina sobre paz. Sem isso, o processo de
adoecimento torna-se sufocante. Sem esse vínculo, não há alívio, não há
esperança, não há Deus.
Na nossa sociedade, somos educados para sermos autossuficientes,
não cuidadores. E, nessa busca pela independência, nos afastamos uns dos
outros. Ignoramos as dores, damos-lhes nomes técnicos, mas esquecemos
de como elas são sentidas. A impotência que experimentei diante do
abandono desse cuidado foi avassaladora.
Sim, dá vontade de registrar tudo. Dá vontade de brincar com as
crianças e simplesmente vivenciar aquele momento com elas. Mas até as
pessoas que parecem saudáveis estão sofrendo. A esperança surge ao
acreditar que referenciar os casos pode mudar algo, mesmo que seja um
pequeno sopro. Alguém precisa ouvir essas histórias. E nós estamos aqui
para isso.
Lucas Moreira Guerra
Médico residente em Oncologia Clínica – HCRP - CRM 219198
Voluntário da 5ª missão UNIVIDA Amazônia
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